O tempo dos coelhos

Coelho — Foto: Simona Robová por Pixabay

RESUMO

Sem tempo? Ferramenta de IA resume para você

GERADO EM: 19/11/2024 - 20:10

Voluntária encontra paz ao interagir com coelhos no abrigo de animais.

Em meio à agitação do dia a dia,uma voluntária em abrigo de animais busca paz ao interagir com coelhos. Enquanto gatos e cachorros demandam atenção,os coelhos oferecem desprezo tranquilo,proporcionando um refúgio do caos do mundo. Nesse refúgio,a comunicação intuitiva e a simplicidade do momento presente trazem calma em contraste com a realidade tumultuada,como a presença de Trump e manifestações neonazistas.

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O melhor que me aconteceu recentemente foi trabalhar como voluntária no abrigo de animais de Los Angeles. Para vocês verem,a coisa por aqui está tão braba que o ponto alto é sair de casa para limpar cocô de cachorro. Faço pela minha filha. Ela quer demais um cachorro,sendo esse o segundo maior conflito familiar. O primeiro é tentar descolar suas mãos do celular sem comprometer as terminações nervosas.

Ela não tem idade para voluntariar sozinha e por isso vamos juntas. Duas horas por semana,lá estou varrendo o chão,dobrando toalhas,lavando cuias. É um lugar bem grande,com dezenas de cachorros e gatos,e também coelhos,tartarugas,lagartos,hamsters,o que mais respirar e for abandonado na porta.

Uma das minhas tarefas é interagir com os cachorros. Eles ficam em quartos individuais,e há dias que a breve presença de uma voluntária é a única forma de afeto. Eu apareço diante da grade com um biscoitinho e sugiro a entrega se o cachorro sentar. O certo seria dizer “seat” (senta em inglês),mas digo “senta”,e depois me alongo numa conversinha doce: “Mas que cachorro bonito,tá gostoso? Come,muito bem.”

Meu português deve deixar os bichos neuróticos. Vem um humano e dá ordens numa língua,vem outra e diz o mesmo de outra forma. Mas se eu falasse em inglês me sentiria mentindo. Na hora do sufoco e do afeto,não importa o quanto imersa eu esteja em outra cultura,o que sai é a língua da infância. É ponte direta e instintiva,do coração para a boca. O português é a língua das emoções primárias,usada para falar com bichos,crianças pequenas e cretinos no trânsito.

Mas o que eu mais gosto de fazer nos meus turnos é ficar com os coelhos. Os coelhos são adoráveis,macios,tranquilos,fofinhos,aconchegantes,quentinhos e sedosos,e durante toda a leitura desta sentença,aliás,de toda a crônica até agora,estarão defecando. Sólido motivo para a minha antipatia,mas descobri na interação uma qualidade invejável: os coelhos não estão nem aí. Gatos e cachorros reclamam e conversam,exigem contato visual e interação. Os coelhos se bastam. Eu tiro um da gaiola,coloco num espaço gradeado e me sento ao lado. A ideia é que se acostumem com humanos,e por 15 minutos eu receberei do animal o mais profundo desprezo. E sabe o quê? Vale muito. Existe ali uma comunicação intuitiva. O coelho sabe que eu estou por perto,eu sei que ele está por perto. É só isso,e suficiente.

Pouco a pouco eu entro no ritmo deles,e num tempo com mais qualidade. É como se eu resgatasse uns minutos de 1986 para preencher um pedaço do meu domingo. Todo mundo tem isso,né? A percepção talvez ilusória de um tempo anterior mais lento e contemplativo.

O meu tempo com os coelhos é assim. Todo todinho no presente,alheio a compromissos e notícias. O coelho está ali comendo,defecando e existindo. Eu me adéquo e faço o mesmo (só a parte do existir,minha gente). É incrivelmente simples e bom. Principalmente agora,com a pesada nuvem dos quatro anos de Trump sobre nós. A rapaziada já está se animando,nesse fim de semana teve passeata neonazista em Ohio. Vai ser duro,eu vou precisar de muito tempo com os coelhos para me acalmar.

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