Painéis fotovoltaicos em uma usina solar operada pela Beijing Energy International Holding Co. nos arredores de Pequim,China — Foto: Andrea Verdelli/Bloomberg
Pequim já foi considerada uma das cidades mais poluídas do mundo,mas a barulhenta capital chinesa de quase 22 milhões de habitantes conseguiu vencer “a batalha pelos céus azuis”. Hoje,a poluição do ar atingiu níveis aceitáveis e para onde quer que se olhe há bolsões de florestamento urbano; a fumaça tóxica dos veículos convencionais rapidamente cede espaço à novíssima frota de carros elétricos; e do alto dos viadutos é impossível não reparar no brilho dos painéis de energia solar instalados sobre os telhados de casas e edifícios. Nesta cidade e em muitas outras partes do país,incluindo zonas rurais,a “civilização ecológica” prometida pelo presidente Xi Jinping parece se tornar cada vez mais uma realidade.
Homem pesca no rio Liangma em Pequim,capital da China — Foto: Pedro PARDO / AFP
Profundamente influenciada por princípios filosóficos do confucionismo e do taoísmo,que enfatizam a harmonia entre homem e natureza,a ideia foi oficialmente apresentada pelo Partido Comunista da China em 2007 e incorporada à Constituição em 2018 como uma resposta à rápida industrialização do país,que sustentou o forte desenvolvimento econômico das últimas décadas,mas causou problemas ambientais severos.
— A liderança chinesa reconheceu que um novo modelo de desenvolvimento era necessário,a fim de assegurar um futuro sustentável para o país — afirma Bernardo Bernardi,professor de Relações Internacionais da Universidade Federal de Pelotas.
PRAGMATISMO CHINÊS
O país então passou a investir fortemente em tecnologia verde,e em pouco mais de 10 anos,conseguiu multiplicar sua capacidade solar instalada em 145 vezes,totalizando 609 gigawatts (gw) em 2023,em comparação com 4,2 gw em 2012. Só em 2023,foram instalados 217 gw,um número que supera o recorde nacional anterior de 87 gw em 2022 e ultrapassa toda a frota solar de 175 gw nos EUA,de acordo com dados da Administração Nacional de Energia (NEA,na sigla em inglês).
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O mercado de veículos elétricos também deu um salto na China,alavancando as vendas em todo o mundo: das cerca de 14 milhões de unidades vendidas em 2023,quase 9,5 milhões (68%) foram para consumidores chineses,mostram dados da Associação Chinesa de Fabricantes de Automóveis.
— A China está realmente comprometida com uma política ambiental forte e a transformação de sua economia,mas não é para construir uma imagem bonita junto à comunidade internacional ou por caridade — afirma Larissa Wachholz,pesquisadora sênior de Ásia do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri). — De forma muito pragmática,percebeu que dentre as maiores economias do mundo,ela seria uma das mais afetadas negativamente pela mudança do clima.
Painéis fotovoltaicos em uma usina solar operada pela Beijing Energy International Holding Co. nos arredores de Pequim,China — Foto: Andrea Verdelli/Bloomberg
Um dos motivos é a segurança alimentar. A China detém 20% da população mundial,mas apenas 8% das terras agricultáveis e 5% dos recursos de água doce,respondendo como o maior produtor de alimentos do mundo,mas também como o quarto maior importador. Além disso,seu desenvolvimento econômico se deu de maneira fortemente concentrada na região costeira,aumentando os temores quanto à elevação dos mares causada pelo aquecimento global,explica Wachholz.
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Mas há também o fator oportunidade,ela diz:
— A China percebeu que a transição ecológica,de forma mais ampla,e a transição energética,de maneira mais específica,tinham grande potencial de desenvolvimento econômico para o futuro,baseado em investimentos de infraestrutura e exportação de produtos de valor agregado,como os carros elétricos e baterias de lítio. É o que eles chamam de forças produtivas de qualidade.
VILAS DE CARBONO ZERO
A China se urbanizou num ritmo sem precedentes,progredindo em todas as regiões do país e mesmo em províncias mais remotas: entre 1978 e 2012,a fração da população que vive nas cidades aumentou de 17,9% para 52,6%,ultrapassando pela primeira vez o contingente rural. Em 2023,essa proporção saltou para 66,2%,de acordo com o Banco Mundial,somando quase 1 bilhão de pessoas.
Novos táxis elétricos da BYD estacionados perto da sede da empresa em Shenzhen,China — Foto: Gilles Sabrié/The New York Times
Uma das estratégias adotadas pelo governo como parte de sua política de construção de uma sociedade ecológica foi justamente melhorar as condições de vida no campo,investindo não apenas em infraestrutura,mas principalmente na transformação das zonas rurais em espécies de vitrines de boas práticas agrícolas.
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Jiangxi é um desses exemplos. Vizinha das ricas Guangdong,Zhejiang e Hubei,essa província do leste do país impulsionou seu desenvolvimento econômico e social implementando o crescimento verde nos últimos anos,com a construção de uma zona piloto de civilização ecológica nacional.
Em agosto,O GLOBO visitou diversas fazendas na região que praticam a agricultura circular,modalidade que assegura o desperdício zero na criação de galinhas,patos ou lagostins,associada ao cultivo de arroz. Visitou também empresas que utilizam ecotecnologia — que buscam reduzir o impacto da produção agrícola no ambiente — para produzir milhares de toneladas de grãos e derivados por ano quase sem usar mão de obra humana.
Vista da vila de Maona após chuva,na cidade de Wuzhishan,província de Hainan,sul da China — Foto: Reprodução/ChinaFotoPress
Histórias de transformação ecológica estão surgindo por toda a parte no Leste e no Sul do país. Em 2023,Jiuhua,em Nanquim,tornou-se a primeira comunidade rural a receber o certificado “Vila de Carbono Zero” após ter atestada sua capacidade de quase não deixar pegadas de carbono,trocando combustíveis fósseis por uso de energia verde em suas atividades diárias. Em julho de 2024,a vila Maona,na província de Hainan,foi a segunda a ser contemplada com essa certificação. A meta do Partido Comunista da China é chegar a 200 vilas certificadas nos próximos anos.
PROJETOS REEMBALADOS
Apesar dos avanços expressivos,a implementação da civilização ecológica na China também enfrenta uma série de desafios,que incluem questões econômicas,como a desaceleração recente do crescimento chinês; sociais,notadamente a desigualdade regional; e ambientais,como a dependência ainda significativa de combustíveis fósseis,especialmente o carvão,ressalta Bernardi.
Há também denúncias de que governos provinciais estejam usando o apelo por uma civilização ecológica para reembalar projetos controversos e vendê-los como benéficos à natureza. Um deles é a construção de uma barragem no Lago Poyang,uma rota migratória de inverno crucial para cerca de 700 mil aves da Ásia,incluindo espécies ameaçadas de extinção,e a área úmida mais importante da China,com influência global,segundo o Fundo Mundial para a Natureza (WWF).
Aves migratórias chegam ao lago Poyang,na província de Jangxi,sul da China para escapar do inverno — Foto: Creative Commons/ Alastair Rae
Rejeitado anos atrás,o projeto de 13 bilhões de yuans pode alterar a ecologia do lago e causar efeitos ambientais mais amplos ao interromper o fluxo de água rio abaixo,segundo ecologistas e ambientalistas. Mas o governo local afirma que represar o lago permitirá conservar a água e lidar com as secas cada vez mais frequentes à medida que o clima esquenta,ajudando a vida selvagem local,além de fornecer irrigação e melhorar a navegação na hidrovia de 170 km de comprimento.
Em 2020,quando Xi anunciou sua meta de atingir o pico de emissões de CO2 antes de 2030 e a neutralidade de carbono até 2060,muitos torceram o nariz,desacreditando da intenção. Quatro anos depois,uma revolução verde chinesa parece estar a plenos pulmões,com resultados vistos a olho nu. Resta saber até quando o país terá fôlego e recursos para levar adiante essa missão.
* A repórter viajou a convite do Ministério do Comércio da China