Cartão do Novo Bolsa Família — Foto: Divulgação
RESUMO
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Políticas sociais no combate à fome: desafios e avanços
As políticas sociais,como o Bolsa Família e o microcrédito,são reconhecidas internacionalmente como eficazes no combate à fome e à pobreza,com exemplos do Brasil e Bangladesh. Apesar dos avanços,desafios como custos e instabilidade de financiamento persistem. A agricultura familiar,integrada à alimentação escolar,também se destaca como uma opção virtuosa. Essas iniciativas são apontadas como essenciais para enfrentar a desigualdade e a insegurança alimentar globalmente.O Irineu é a iniciativa do GLOBO para oferecer aplicações de inteligência artificial aos leitores. Toda a produção de conteúdo com o uso do Irineu é supervisionada por jornalistas.
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A desigualdade de renda no Brasil,uma das mais altas do mundo,fez do país um celeiro de boas práticas de políticas sociais. O exemplo mais famoso é o Bolsa Família,que já é adotado em mais de 80 países,com o modelo de transferência de renda condicionada à vacinação das crianças e à frequência escolar,afirma Marcelo Neri,diretor da FGV Social,e um dos principais estudiosos de pobreza e desigualdade no Brasil.
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Nesse rol de alternativas para tirar a população da extrema pobreza,ainda entram o microcrédito — inspirado na experiência de Bangladesh — e a agricultura familiar,principalmente quando associada ao programa de merenda escolar. São tecnologias que podem ser adaptadas em menor ou menor grau em outros países.
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Mas há desafios para expansão dos programas,principalmente o custo fiscal,já que,no Brasil,são despesas não obrigatórias que podem ser reduzidas ou não ter os reajustes de valores suficientes para manutenção das iniciativas. Já houve cortes nessas políticas em anos recentes,que fizeram o país voltar ao Mapa da Fome das Nações Unidas,dizem especialistas.
Bolsa Família
Mais de 80 países replicam o programa Bolsa Família,de transferência condicionada de renda (que exige vacinação e frequência escolar),diante da eficiência da tecnologia social no combate à pobreza e à fome. No Brasil,o programa criado em 2004,unificando várias políticas públicas de assistência,atende atualmente 20,8 milhões de famílias,destinando a elas R$ 680,90 em média. A política foi incluída no cardápio de alternativas que serão oferecidas aos países na Aliança Global contra a Fome e a Pobreza,que teve seu pré-lançamento na semana passada,na reunião dos ministros de Desenvolvimento dos países do G20,no Rio.
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O sociólogo Rafael Osório,pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea),diz que,após a experiência de 20 anos,o programa atualmente tem seu melhor desenho,com boa focalização — o cadastro único como instrumento para chegar às famílias pobres — e,agora,com mais recursos. O gasto mensal é de aproximadamente R$ 14 bilhões.
— É uma fórmula que muitos países adotaram,partindo de três modelos: o brasileiro,o chileno e o mexicano. São modelos de programas que já passaram por avaliações e são baseados em evidências de sua efetividade — afirma Osório.
O Bolsa Família cresceu,passando de uma média de 13 milhões de domicílios atendidos para os 20 milhões atuais. Também houve reajuste do benefício,com o atual piso de R$ 600.
Seguro em emergência
O piso foi implementado no governo Bolsonaro e mantido no governo Lula,quando a composição familiar voltou a ser considerada para definição de valores adicionais no benefício. Famílias com crianças,gestantes e mulheres que amamentam recebem valor extra.
— A gente sempre dizia que o programa era bom,mas precisava pôr mais dinheiro. E puseram,mas em política social não é adequado ter um piso por família. O ideal é ter um valor per capita (para se adequar ao tamanho da família) — diz Osório.
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Outra mudança foi a inclusão de um período de transição se o domicílio ultrapassar a renda máxima exigida para receber a transferência (o teto é renda familiar menor ou igual a R$ 218 por pessoa).
Apesar de considerado eficiente no combate à pobreza,há riscos para o sucesso do programa,entre eles a falta de reajuste. Em 2023,houve a PEC da Transição,que previu recursos para os programas sociais,mas como o gasto com o Bolsa Família não é uma despesa obrigatória,existe a possibilidade de redução do dinheiro destinado ao projeto para manter o equilíbrio fiscal.
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O economista Marcelo Neri,fez estudos sobre o efeito multiplicador do Bolsa Família. Segundo ele,cada real gasto tem impacto na demanda total da economia que corresponde a três vezes o gasto previdenciário e cinco vezes o valor do FGTS,em termos de efeito anticíclico. A maior parte do dinheiro é usada para comprar alimentos,material escolar e roupas:
— Sem o programa,14% da população estaria na pobreza extrema,e não 9%,como é hoje — diz Neri.
Para o pesquisador,um ponto a ser aperfeiçoado é a provisão de seguro ligado ao programa. Ele cita pesquisa que aponta parentes e vizinhos como a maior rede de proteção,em casos de emergência:
— Mas quando todos perdem juntos,seria importante ter um seguro. Isso é cada vez mais necessário por causa das mudanças climáticas,como vimos no Rio Grande do Sul.
Microcrédito
O economista de Bangladesh Muhammad Yunus fundou,em 1976,o Grameen Bank,lançando um projeto de microcrédito inédito que passou a ser referência no mundo — a ponto de seu criador ter ganhado o Prêmio Nobel da Paz em 2006,por ter tirado milhões da pobreza com seu programa. No Brasil,que tem uma das taxas de juros mais altas do mundo,a política de inclusão produtiva tem muito espaço para crescer,mas já conquistou relevância no Nordeste. O programa Crediamigo,do Banco do Nordeste (BNB),nasceu há 26 anos e atende a todos os estados da região,norte de Minas Gerais e do Espírito Santo. Só no ano passado,foram emprestados R$ 10,64 bilhões,18% do total financiado pelo banco.
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— O programa veio preencher uma lacuna. O acesso a crédito era praticamente inexistente na década de 2000. A política não é só emprestar,está condicionada a acompanhamento e orientação. Faz muita diferença no retorno,porque a orientação permite que o dinheiro seja bem aplicado. Os anos mostraram que isso ajudou muito nesse processo. Hoje,são 14 mil operações por dia— afirma Paulo Câmara,presidente do Banco do Nordeste.
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A tecnologia social é sustentada por agentes de crédito que atuam como os agentes de saúde e de assistência social,dando apoio e mapeando as necessidades dos clientes. Esse é o ponto forte do programa,que já foi avaliado e considerado uma política eficiente de redução da pobreza. O BNB tem recebido representantes de outros países,principalmente da América Latina,com estrutura socioeconômica semelhante à brasileira,para replicar o programa nos seus países,diz Câmara.
Renda até R$ 3 mil
As operações são,em maioria,para clientes com renda familiar de até R$ 3 mil,que representam 62,6% da carteira. Apenas 9% vão para os que têm renda acima de R$ 5 mil. O principal obstáculo para essa população é a garantia. O banco criou o aval solidário,que une três pessoas numa espécie de consórcio para formar a garantia. Hoje,a inadimplência está em 4%,um pouco acima da média de pessoas jurídicas de 3,3% em junho deste ano,segundo o Banco Central.
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As taxas de juros se aproximam do crédito consignado,em média,1,89% ao mês,com 65% dos empréstimos na faixa entre R$ 100 e R$ 3 mil. Os valores,pelo programa,podem chegar a R$ 21 mil.
— Temos estrutura do Crediamigo espalhadas em 400 municípios e pretendemos chegar a mil até fim de 2025. Quanto maior a presença do nosso pessoal,mais pessoas se credenciam a estar no programa — afirma Câmara.
Mas o empecilho maior,na visão do executivo,é a taxa de juros. O foco do programa é que as pessoas que estão no Bolsa Família tenham condições de empreender. Com esse objetivo,outra perna do programa,dessa vez subsidiado pelo governo federal,é o Acredita,que cobra 0,7% ao mês,destinado principalmente ao público do Cadastro Único.
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Luiz Carlos Everton de Farias,secretário nacional de Inclusão Socioeconômica do Ministério de Desenvolvimento Econômico (MDS),diz que o programa,lançado mês passado,conta com um Fundo Garantidor de Crédito de R$ 1 bilhão,mais € 20 milhões doados pelo banco de investimento e fomento alemão KFW.
— Com esse fundo,esperamos alavancar até R$ 12 bilhões de crédito,e a taxa é de 8,85% ao ano. O programa já foi incorporado pelo Banco do Nordeste e pelo Banco da Amazônia. O objetivo é atender dois milhões de pessoas.
Agricultura familiar
O Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) integrado com a agricultura familiar estará no cardápio de alternativas da Aliança Global contra a Fome e a Pobreza que o governo brasileiro anunciou semana passada,no âmbito do G20. É um programa “virtuoso”,classifica o sociólogo Rafael Osório,ao aliar alimentação saudável,inclusão produtiva e comércio local na mesma política.
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O apoio à agricultura familiar,aquela mais dependente das transferências governamentais,ganhou força com o Programa de Aquisição de Alimentos do governo federal ainda nos anos 2000,quando Francisco Menezes presidia o Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea) — atualmente ele é assessor de políticas da ActionAid,organização internacional voltada para o combate à desigualdade e à pobreza:
— As compras institucionais incentivaram o cooperativismo entre os pequenos agricultores,num programa administrado pela Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) para doação a populações vulneráveis,escolas e formação de estoque.
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Esse foi o pontapé inicial da merenda escolar associada à agricultura familiar. Em 2011,o governo determinou que pelo menos 30% da compra de alimentos para os 40 milhões de alunos das escolas públicas fossem da agricultura familiar,próxima dos locais das unidades escolares:
— A preferência era que fosse adquirido pela agricultura familiar,(como entre) indígenas e comunidades tradicionais,visando a produção próxima do consumo das escolas. Isso abriu um mercado para agricultura familiar que nunca tinha se visto antes.
Segundo a secretária nacional de Segurança Alimentar do Ministério de Desenvolvimento Social,Lilian Rahal,há cidades,como São José do Rio Preto,em São Paulo,que chegam a comprar 70% da merenda escolar da agricultura familiar.
Instabilidade
Hoje o governo brasileiro coopera diretamente com 70 países da América Latina e da África na adoção desse programa de alimentação escolar.
— Esse programa e a Embrapa são as grandes estrelas lá fora. Ter criado essa chave entre agricultura familiar,respeitando os hábitos alimentares regionais,explica o sucesso do programa. Mas o trabalho começou antes: o Programa de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) tem 30 anos. Houve um rol de políticas de crédito e de assistência que fomentaram o setor. Para 2024/2025,foram destinados R$ 75 bilhões ao Pronaf.
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Menezes chama a atenção para a instabilidade no financiamento do Programa de Aquisição de Alimentos,que chegou ao fim de 2022 com apenas R$ 90 milhões de financiamento. Em 2018,alcançara R$ 800 milhões. O mesmo aconteceu com a merenda escolar:
— Quem não lembra de crianças dividindo ovo na merenda?
As verbas foram recompostas. Em 2023,o Programa de Aquisição de Alimentos chegou a quase R$ 1 bilhão,e o valor per capita da merenda foi reajustado em 30%,diz Menezes:
— Também se tornou essencial que o planejamento da política de segurança alimentar considere emergências climáticas,como a do Rio Grande do Sul,prevendo orçamento para isso. É importante pautar essa questão,porque não bastarão mais as antigas políticas de enfrentamento da fome e da insegurança alimentar.